A tela e o desenvolvimento humano – Elvira Souza Lima
Elvira Souza Lima é
pesquisadora em desenvolvimento humano, com formação em
neurociências, psicologia, antropologia e música.
Que impacto tem o
computador e outros artefatos tecnológicos no desenvolvimento e na
formação humana? São centenas as pesquisa sobre a interação
homem e tecnologia. Uma temática muito pesquisada é a interação
com os equipamentos tecnológicos com tela.
Tecnologia e infância
combinam?
A exposição à tela
iluminada (TV, computador, celular, ipad, etc), segundo vários
pesquisadores, pode impactar negativamente o desenvolvimento humano.
Tanto é que a Associação Nacional de Pediatria dos Estados Unidos
recomenda que crianças até dois anos não sejam expostas à tela.
Razão: a tela plana interfere no desenvolvimento da visão que
acontece ao longo dos dois primeiros anos de vida. Um outro motivo: a
limitação que o uso dos equipamentos tecnológicos acabam por
acarretar no desenvolvimento da criança, pelo fato de que, frente à
televisão ou computador, ela não realiza outras atividades básicas
que garantem a formação de memórias a partir das experiências com
os outros sentidos e dos movimentos do corpo no espaço. Além,
naturalmente, de experiência com os
objetos e pessoas do mundo
real.
Há muito que pesquisar
sobre o uso da tecnologia, porém é sempre bom lembrar que todo e
qualquer equipamento tecnológico faz parte da cultura humana e que o
cérebro se desenvolve em função da cultura. O desenvolvimento do
cérebro é de natureza biológica e cultural. O cérebro se forma,
se desenvolve e amadurece com base na genética da espécie e pelas
experiências de vida de cada um. O cérebro tem enorme plasticidade,
ou seja, é capaz de se organizar e reorganizar continuamente durante
toda a vida do ser humano.
A plasticidade é maior na
primeira infância, mas se mantém durante a adolescência e toda a
vida adulta. Esta é uma característica importante do
desenvolvimento: a possibilidade de modificações e mudanças a
qualquer idade. Até na ocorrência de acidentes cerebrais, lesões
ou outras condições biológicas adversas, o cérebro é capaz de se
reorganizar funcionalmente. Oliver Sacks escreveu extensivamente
sobre casos clínicos de patologias e acidentes cerebrais e a
capacidade de reorganização do cérebro apresentada por muitos
pacientes e inclusive de sua experiência pessoal, como a perda de
visão de um olho (O olhar da mente, de Oliver Sacks). Em uma
pessoa cega, por exemplo, o cérebro se modifica desenvolvendo mais
os sentidos do tato e da audição, dois sentidos em que o cego se
apoia para percepção e ações que seriam próprias da área do
córtex visual.
Nosso cérebro é,
portanto, dinâmico. Conforme nos diz Kandel, prêmio Nobel de
Medicina em 2000 (pela descoberta sobre a formação e funcionamento
de memórias de curta e de longa duração): “O cérebro não é
estático, ele é plástico!” Ele responde às mudanças nos
contextos em que a pessoa vive ou frequenta. É o que mostra o
documentário Em Busca da Memória.
Ao longo da história
cultural do ser humano as invenções, aquisições e produções em
cada período histórico suscitam respostas ou diferenciações no
cérebro e provocam mudanças significativas em seu funcionamento.
Vejamos o exemplo da
escrita. A escrita é uma invenção, é um produto cultural criado
pelo ser humano. Não há no cérebro uma área destinada a aprender
a ler ou a escrever, como acontece com a fala. Para ler e/ou
escrever, o cérebro passa por um processo de mudança formando redes
neuronais específicas para compreender os significados ao se ler um
texto e para criar significados quando se escreve um texto. Isto
acontece precisamente porque, como observamos, não há uma área
específica no cérebro para a aprendizagem da leitura e da escrita.
Dehaene, neurocientista
francês, um dos maiores especialistas em cérebro e escrita, em seu
livro Neurônios da Leitura, esclarece que “ um dos efeitos maiores
da escolarização é o aumento da capacidade da memória.” Segundo
ele “ há ainda modificações anatômicas como é o caso do corpo
caloso que se espessa na pessoa que aprende a ler.”(Dehaene,
Neurônios da Leitura, 2012, pg. 227).
A invenção da escrita, a
invenção da imprensa e agora a invenção de novos instrumentos
tecnológicos e novos usos da tecnologia na vida cotidiana causam
impacto na história evolutiva da espécie. E, como mostram as
pesquisas da neurociência acumuladas nas últimas décadas, há
certamente um impacto no desenvolvimento e e funcionamento do
cérebro, porém, não a ponto de que, após cinco mil anos de
existência da escrita, o cérebro dispense ensino, exercício e
sistematização para se tornar um cérebro
capaz de ler e de
escrever. O cérebro se modifica anatomicamente, mas destas
modificações não resultam que ler e escrever se desenvolvam
naturalmente como a fala.
A leitura e a escrita
precisam ser ensinadas e é necessário muito estudo para que uma
pessoa, em qualquer idade, se aproprie da estrutura básica do
sistema linguístico de qualquer língua escrita, alfabética ou
ideográfica.
Para ler, diz ele, há que
se formar uma nova estrutura no cérebro, que ele chamou de “boîte
aux lettres” (tradução livre, caixa de letras). Esta estrutura
possibilita aprender a lidar com o sistema simbólico da escrita, em
qualquer língua. Ela é resultante da plasticidade do cérebro e
revela que uma invenção cultural impacta e promove modificações
no cérebro. É o que acontece, também, com instrumentos
tecnológicos e com o uso da tecnologia.
Tecnologia e cérebro
Tecnologia sempre houve na
espécie humana: o desenvolvimento tecnológico se realiza pela
transmissão cultural em que uma geração passa à seguinte os
conhecimentos, metodologias e instrumentos. O extraordinário
desenvolvimento da tecnologia do século XX se deu, primeiramente,
pela ampliação do acesso à escolarização. E trouxe, como
consequência, situações novas não experimentadas pela espécie
humana anteriormente, como, por exemplo, o domínio no manejo dos
aparatos tecnológicos. Hoje os mais novos, crianças e jovens,
aprendem e usam instrumentos tecnológicos com maior destreza do que
os adultos. Maior destreza não significa, no entanto, maior
conhecimento e maior capacidade de formar conceitos e trabalhar
mentalmente com informações das áreas de conhecimento formal.
Daí podemos inferir que
novos produtos culturais têm um impacto no cérebro e não poderia
ser diferente pois o desenvolvimento do cérebro é função da
cultura, incluindo, naturalmente, os contextos contemporâneos
disponíveis ao ser humano, presenciais e à distância.
*Elvira Souza Lima é
pesquisadora em desenvolvimento humano, com formação em
neurociências, psicologia, antropologia e música.
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